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Os efeitos da COVID-19 na inexecução dos contratos de locação

Com base na experiência de outros países da Europa e da Ásia, a primeira medida adotada pelas autoridades brasileiras para conter os avanços da COVID-19 foi o isolamento social e a determinação de fechamento das  atividades não essenciais, apesar de ser uma decisão política controvertida em função de gerar graves reflexos na economia, salvo melhor juízo, parece que não há como deixar de seguir as orientações técnicas da Organização Mundial de Saúde – OMS e demais profissionais da saúde, até porque a Administração Pública tem responsabilidade objetiva por seus atos omissivos e comissivos (§6º do art. 37 da CF), inclusive, no caso específico da pandemia, cabe aos entes públicos atuar de forma preventiva com base no princípio da precaução sob pena de responder por sua omissão, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça – STJ ( REsp 1.299.900 , 2ª Turma do STJ, Data de Julgamento 03.03.2015, relator: Ministro Humberto Martins).

Por outro lado, também, não se pode negar que o fechamento do comércio e das atividades não essenciais acarretará consequências nas relações jurídicas de direito privado, mais especificamente no cumprimento das obrigações, pois, todos dependem do exercício da atividade econômica para honrar com seus compromissos financeiros.

Sendo assim, muitos conflitos irão bater na porta do judiciário e para evitar a judicialização destas demandas, o poder legislativo já está trabalhando no projeto de lei 1179/2020, o qual estabelece normas prévias de resolução e interpretação das relações jurídicas no período da pandemia. O referido projeto de lei não traz nenhuma inovação jurídica, por este motivo, ainda que seja um projeto de lei, as suas regras podem ser debatidas antes mesmo da aprovação da norma pelo congresso nacional.

Nesse sentido, parece ser incontroversa entre os operadores do direito que a pandemia é uma situação típica de caso fortuito ou força maior, onde o devedor estaria em tese imune das penalidades resultantes do descumprimento da obrigação contratual, porém, a aplicação dos referidos institutos previstos no art. 393 do Código Civil não é tão simples quanto se imagina, a jurisprudência de nossos tribunais já consagrou o entendimento que, em determinadas situações de caso fortuito, o dever de manter o cumprimento da obrigação contratual e/ou extracontratual permanece inalterado, isso ocorre na hipótese do fortuito interno, cita-se como exemplo: (i) a súmula 479 do STJ, (ii) o acidente de trabalho, ainda que o empregador tenha adotado todas medidas de segurança; (iii) o responsabilidade civil pelo acidente aéreo; (iv) o acidente ambiental causado por empresa que segue todas as normas ambientais; (v) o acidente provocado por terceiro a um ônibus de transporte rodoviário. Ou seja, em todos os exemplos descritos acima, a simples presença da imprevisibilidade não é suficiente para a excludente de responsabilidade do devedor.

Outro ponto relevante para a configuração da irresponsabilidade do devedor, com base no art. 393 do Código Civil, é a existência do prejuízo, isso porque, mesmo na presença do caso fortuito e da força maior, se o devedor não tiver prejuízo diretamente ligado com a pandemia, não há fundamento para que a obrigação deixe de ser cumprida, configurando-se abuso de direito o pedido de mora do devedor.

No caso específico dos contratos de locação não residencial, o locatário que não sofreu redução de seus rendimentos mensais não tem motivo para deixar de honrar com o pagamento do aluguel ao locador. E com objetivo de evitar qualquer tipo de dúvida e tomando-se como premissa a existência de prejuízo do devedor, o projeto de lei n° 1179/2020 do senador Antônio Anastasia deixou claro que somente quem sofreu alteração da sua situação econômico-financeira poderá solicitar a suspensão do pagamento dos alugueis (art. 10 da PL 1179/2020). Como dito alhures, o projeto de lei veio em boa hora para evitar o aproveitamento oportunista da crise trazida pela COVID-19.

Por outro lado, diferente é a locação de imóveis não residenciais (comerciais), nessas espécies de locação, diante dos decretos de isolamento social, o locatário foi total ou parcialmente impedido de fazer uso do imóvel para os fins previstos no contrato de locação (vide as hipóteses das locações em “shopping center”, entre outras). Com isso, em função de impossibilidade de uso do imóvel comercial, deve-se perquirir acerca da teoria da exceção do contrato não cumprido (art. 476 do CC), isto é, se o imóvel tornou-se indisponível para o uso a que se destina, perde-se o caráter sinaligmático do contrato. A exceção do contrato não cumprido (art. 476 do CC) permite a inexecução do contrato pelo locatório de imóvel comercial, por óbvio, o ideal seria as partes contratantes manterem tratativas para chegar-se a um acordo, contudo, caso a negociação não tenha sucesso, a aplicação do art. 476 do CC poderá ser alegada pelo locatório e a decisão ficará nas mãos do judiciário que deverá analisar caso a caso com base nas peculiaridades de cada relação jurídica.

Por fim, no tocante às ações de despejo ajuizadas após 20 de março de 2020, a PL 1179/2020 estabeleceu a suspensão da concessão de liminares nas hipóteses do art. 59 da Lei 8245/91, o judiciário já estava barrando a concessão da liminar, trata-se de uma medida salutar para preservação de direitos básicos de saúde e habitação em detrimento do direito de proprietário locatário, nota-se ainda que, o locador não sofrerá prejuízos irreparáveis, posto que, no atual estágio de isolamento social e quarentena, pouco provável que ele não terá condições de voltar a locar o imóvel em questão.

Em resumo, os contratos de locação residencial e comercial não podem ter a mesma interpretação no caso de inexecução da obrigação, no primeiro caso deverá haver a comprovação do prejuízo do devedor ligado diretamente ao isolamento social e à alteração da situação econômico-financeira do locatário (fortuito externo), na segunda situação (locações comerciais), o fundamento da inexecução do contrato está vinculado à teoria da exceção do contrato não cumprido (art. 476 do CC), uma vez que, em tese, o locatário não usufruiu total ou parcialmente do imóvel, o que acarretou momentaneamente a perda da reciprocidade inerente aos contratos de locação.

Silvio Dutra
advogado e mestre em direito empresarial pela PUC/SP.

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